sábado, 30 de setembro de 2017

Entre subestimados e blefadores

As vezes o sucesso e o fracasso se parecem com resultados de uma rodada de dados num cassino.
As vezes o sucesso e o fracasso se parecem com resultados de uma rodada de dados num cassino.

Viagens possuem o dom de nos alimentar por tempo indeterminado com lembranças que parecem desconexas, mas que subitamente afloram fazendo sentido.

Lembro de, há vinte anos, estar caminhando por uma praça de Montevidéu, a capital do Uruguai, nas imediações do Mercado do Porto. Havia um jovem tocando violão com uma gaita afixada sobre o peito, feito um Bob Dylan latino-americano. Sua voz, porém, tinha o timbre ácido de Liam Gallagher, ex-vocalista do Oasis. Ele estava cantando uma canção de John Lennon, "Jealous Guy".

O rapaz era muito bom, muito maior do que a caneca de alumínio diante de seus pés, onde minhas moedas repicaram, me rendendo um "gracias" do artista. Sim, um artista perdido nas latitudes austrais do continente. "Como pode um cara como ele permanecer no ostracismo?" - Foi a pergunta que me fiz na época.

As estações de rádio, infelizmente, estão longe de valorizar os verdadeiros artistas atualmente. Dentre as poucas que tocam "flashbacks", nos deparamos com uma profusão de músicas sem qualidade. Há alguns dias estava passeando pelo "dial" quando o meu humor azedou de vez, ao ouvir um cara fanho e resfriado, que acordou de ressaca para gravar a faixa da extrema-unção da música popular brasileira.

"Isso não é música" - pensei. "Estão desonrando a tradição de Tonico e Tinoco dizendo que isso é de estilo caipira" - caipira não, é sertanejo universitário.

Comparando o uruguaio com o brasileiro, fico a indagar como o destino é irônico com as pessoas. Parece haver uma aleatoriedade cruel que impede que gente talentosa encontre seu espaço e permite que pessoas medíocres alcancem resultados acima de sua real capacidade.

Então me ocorreu que pode não ser uma aleatoriedade sem lógica, como a roleta de uma casa de apostas. É fato que podemos interferir no curso dos acontecimentos. O que me faz crer que o sujeito que fez "cover" de Lennon seja alguém subestimado, ao passo que o neo-caipira do século 21 seja o perfeito blefador patrocinado por alguém.

Blefadores fazem sucesso pois, numa sociedade onde impera a mediocridade, é reconfortante saber que um medíocre se deu bem. Isso passa a sensação de que pode acontecer com qualquer um, independente do esforço empregado.

Nas artes plásticas isso é ainda mais gritante. Um dos traços da sociedade medíocre em que vivemos é que a arte é altamente relativizada. Tudo pode ser arte. Só depende de quem vê.

Então as galerias apresentam telas que parecem ter sido pintadas por adolescentes fazendo um curso de férias. Instalações juntam cacarecos que, para faxineiras desavisadas, seriam entulhos de reformas esquecidos no museu.

O medíocre vê um quadro com borras de tinta cuspidas em papelão ondulado e vai para casa pensando que também poderia ser um artista. Porém, ao caminhar por uma feira livre onde artistas de verdade estão expondo seus trabalhos, passa reto em direção à barraca do pastel.

Onde os medíocres são maioria, os poucos que se sobressaem são ignorados - deixados de lado mesmo. As vezes, quem ousa pensar com a própria cabeça é chutado para escanteio, estando condenado à solidão se não encontrar outras pessoas com as mesmas angústias.

Assumindo o risco de pensar por conta própria, devo concordar que não deve haver censura para as artes. As pessoas devem ter liberdade para criar e expor seus trabalhos.

No entanto, se não deve haver limites para a produção e divulgação da arte, também não deve haver limites para a crítica da arte. As pessoas tem o direito de observar um quadro e dizer que ele não serviria nem para forrar gaiolas de passarinhos.

Alguém precisa dizer que blefadores não são artistas. Alguém precisa reconhecer o valor dos artistas subestimados.

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2 comentários:

  1. Perfeito! Apenas isso.
    PS. Jean Tosetto. Você é um artista das palavras escritas.

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    Respostas
    1. Quando aqueles que se empenham em algo se manifestam contra a mesmice, estão sujeitos a ouvir que são elitistas, mas é preciso que se manifestem. Grato!

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