Brinquedos no tapete da sala: criança em casa. |
Acordo cedo e, ainda com remelas nos olhos, preparo um café na cozinha. Com a xícara fumegando na mão esquerda, atravesso a sala de estar para destrancar a porta do escritório. Vou desviando dos brinquedos da minha filha, esparramados no tapete. É um malabarismo que me faz sentir como o Indiana Jones vasculhando uma catacumba, evitando pisar nas pedras que abrem um alçapão para um fosso repleto de cobras e lagartos.
Depois que minha filha nasceu, minha casa - e minha vida - nunca mais ficou arrumada. A bagunça começou logo no primeiro dia. Ela nasceu na hora do almoço. Minha primeira refeição, como pai, foi um salgado na cantina da Maternidade. Saí para caminhar pelo centro de Campinas. Percorri a Avenida Francisco Glicério desviando de camelôs, ambulantes e pedintes.
Meus ouvidos eram bombardeados por comerciantes promovendo seus produtos nas portas das lojas, carros buzinando, sirenes de viaturas policiais, ônibus freando e saindo de primeira. Mas os sons, ruídos e barulhos entravam abafados na minha mente. Estava discando uma ligação a cobrar para o Papai do Céu.
Subitamente uma praça se abriu diante de mim. Ao fundo, a Catedral Metropolitana construída por escravos há séculos. Era o Senhor atendendo à minha chamada. Só me lembro de ter flanado em direção à escadaria daquela construção de taipa e pilão.
Meus olhos ficaram embaralhados ao percorrer aquele cenário barroco esculpido em madeira com entalhes dourados. Anjos e santos conversavam freneticamente, mas dezenas de pessoas sentadas e ajoelhadas nos bancos pareciam não escutar, inertes em suas orações.
Então eu disse para Ele:
- Sei que até aqui você sempre me ajudou. Mas agora não peço por mim. Peço por minha filha. Me ajude a tomar conta dela. Não posso deixar que nada falte para minha família. Estou com medo, mas não posso falhar nesta missão. Me ajude.
A resposta veio criptografada. Não entendi as palavras que brotaram no meu coração. Senti que levaria algum tempo para decodificar tudo, enquanto flutuava pelo corredor central da nave. Ao chegar perto do altar, saí por uma porta lateral e continuei caminhando.
Desci até o Mercado Municipal. O alarido era diferente. Ao invés de anjos e santos, era o povão conversando. Gente querendo vender um pacote de biscoitos de polvilho para levar um litro de leite para o barraco alugado no Ouro Verde. Cores em profusões. Cheiro de fumo de rolo misturado com ervas e temperos. Cheiro de peixe fresco. Faces vincadas pelo tempo, aradas pelo trator do trabalho duro.
Quanta gente necessitada neste mundo! Clamei pelo Grande Pai novamente:
- Perdoe meu egoísmo. Fico pedindo as coisas para mim e agora para a minha filha. Mas agora estou vendo que há muito mais pessoas precisando de você. Cuide também delas. Enxugue as lágrimas daquela senhora solitária. Console o garoto que vê o brinquedo na vitrine, e que não pode comprar. Mas não descuide de minha filha.
Com o trato feito, embora não assinado, voltei para a Maternidade. Não foi apenas minha filha que nasceu. Um novo homem nascia naquele dia. Não mais o jovem confiante que projetava o futuro com sua lapiseira Pentel 0.9, mas o matador de leões que também engole sapos, e que mora no meio dessa bagunça que ele chama de casa. Abençoada bagunça.
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