Homens descarregam bebidas transportadas por um caminhão, no interior profundo do Rio Grande do Sul. |
Nos últimos meses tive dois grandes motivos de felicidade: os reconhecimentos das cidadanias italiana, por parte de pai, e polonesa, por parte de mãe. Dois personagens foram fundamentais nestes processos: meu pai Anibal Hercules Tosetto, que durante anos reuniu documentos de toda a família e esperou pacientemente na fila do consulado italiano em São Paulo; e meu primo Jamil Mantey Ghani, que foi pessoalmente até a Polônia ao descobrir que nosso bisavô, Friederich Mantei, embora falasse alemão fluentemente e fosse casado com a alemã Lidia Stein, tinha passaporte polonês por ter servido as forças daquela nação na Primeira Guerra Mundial, contra a própria Alemanha.
Por causa de um sentimento de gratidão e de uma curiosidade crescente, comecei a conversar com tios e pais sobre a história de meus avôs, ao perceber que estes relatos estão evaporando na brisa do tempo, com o lento passamento das testemunhas. Descobri, entre outras coisas, que minha tia Irena Mantey Balensiefer guarda uma caixa com cerca de 140 fotografias que eram do acervo da minha avó, Hertha Mantei, cobrindo um longo período entre a década de 1950 e 1980. Pedi essa caixa emprestada e passei várias horas digitalizando as imagens em alta resolução. Uma tarefa lenta que me permitiu observar cada foto em suas minúcias.
Antigamente as pessoas não dispunham de máquinas fotográficas portáteis: as famílias contratavam fotógrafos para registrar as ocasiões especiais. Por isso, a maioria das fotos eram referentes a casamentos e velórios. Sim, na linha Silva Jardim, que reunia colônias de descendentes de alemães e poloneses entre os municípios de Santa Rosa, Giruá, Cândido Godói e Ubiretama, no noroeste do Rio Grande do Sul, os familiares de entes queridos falecidos eram fotografados diante dos caixões abertos, como na capa do mítico disco dos Beatles, "Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band". Foi algo um tanto macabro descobrir que uma de minhas bisavós, por exemplo, teve apenas quatro imagens registradas - somente uma ainda em vida.
Nas fotografias dos casamentos realizados em igrejas luteranas, dezenas de pessoas se aglomeravam em torno dos noivos, a ponto de ser difícil identificar os rostos depois de mais de meio século. Há também várias imagens de famílias nucleares, com os filhos rodeando os pais sentados em cadeiras nos jardins diante de casas de madeira.
Da coleção de fotos da minha avó, poucas registram cenas do cotidiano, como desfiles cívicos, locais de trabalho e amigos reunidos para tocar músicas em instrumentos feitos por eles mesmos. Meu avô, Ernesto Mantei, era um deles, marceneiro talentoso que tocava o próprio violino - e eu daria minha guitarra Giannini 1985 em troca dele, cujo paradeiro é desconhecido.
A fotografia que estou dividindo com vocês me chamou atenção logo de cara. Ela se parece com um poster que decora bares noturnos e garagens de carros antigos. Descobri que aquele caminhão (*) era similar ao da oficina dos irmãos Mantei, onde meu avô trabalhava. O caminhão da marcenaria era polivalente: fazia a entrega dos implementos agrícolas fabricados artesanalmente, buscava mantimentos em Santa Rosa para a comunidade rural, e transportava o time de vôlei da linha Silva Jardim, que costumava vencer os torneios regionais. Quando alguém se casava em outra linha, os convidados se abancavam neste caminhão, também.
O exemplar da foto, pelos detalhes de acabamento da carroceria, do para-choque frontal e do espelho retrovisor, é um GM Chevrolet Special 1944. Se estiver enganado, será por um ou dois anos, pois encontrei imagens de modelos parecidos de 1945 e 1946. Era um lindo caminhão, já velho para a época, pois apurei que a fotografia deve ser de 1961 ou 1962, a julgar pelas outras fotografias datadas no verso, em estado de conservação semelhante.
Não se pode afirmar quem seria o autor da imagem que capturou o espírito de uma época, onde as pessoas eram mais solidárias diante da escassez de recursos financeiros. A única referência que descobri, também no verso de algumas fotografias, diz respeito a Augusto Fischer, da Fivo Foto, que ficava na linha Oito de Agosto em Giruá. Não havia telefone para contato no carimbo de identificação.
Tudo leva a crer que esta fotografia foi tirada espontaneamente: o cão vira-latas observando a cena, o garotinho de pés descalços brincando com um simulacro de caminhão de madeira no chão de terra avermelhada, o homem de quepe que provavelmente era o motorista do caminhão e coordenava a entrega dos engradados de cerveja e refrigerante. A Pepsi-Cola era um artigo de luxo na localidade, só consumida aos domingos, assim como a Grapette (sabor uva) e a Mirinda (sabor laranja).
Porém, observando atentamente cada elemento da imagem, percebi que três homens estavam com cigarros inteiros na boca, sem sinais de fumaça. Seria coincidência demais que três rapazes resolvessem começar a fumar no mesmo momento, durante a execução de uma tarefa braçal. Muito provavelmente o descarregamento das bebidas ocorreu de fato, mas o fotógrafo deve ter dado uma forcinha para organizar a cena, orientando inclusive que eles esquecessem de sua presença.
A análise gráfica da fotografia demonstra o senso de proporção dos terços e que a ação se desenvolve numa diagonal. |
A composição da imagem, quando se decupa as linhas mestres que dividem a fotografia em três linhas e três colunas, é interessante demais para ter sido meramente um golpe de sorte do fotógrafo, que soube escolher bem o ângulo que enaltecia a perspectiva dos principais componentes. Até as rodas dianteiras do caminhão, levemente apontadas para a direita, ajudaram.
O arranjo da cena, porém, pouco importa. Pode ter sido espontânea ou levemente ensaiada. De certo a fotografia não foi capturada por um amador e, por isso mesmo, ela atravessou décadas guardada numa caixa de papelão, até ser resgatada por alguém que lhe reconheceu valor além do mero registro de um tempo e de um lugar que não existe mais.
Saudações cordiais,
Jean Vitor Mantei Tosetto
(*) P.S.1: comentário de Valkiria Mantey Ghani, enviado pelo Facebook em 08 de maio de 2017:
"Bem interessante seu texto, embora a oficina dos Mantey tinha um caminhão igual esse é mais provável que esse é da família Bieger que fabricava um refrigerante chamado gasosa e também cerveja e fazia a distribuição das bebidas."
P.S.2: vídeo editado por Anibal Hercules Tosetto, com outra fotografia emblemática daquela era:
Veja também:
Jean,
ResponderExcluirAproveito o seu texto para mostrar um vídeo que editei, em agosto de 2015, sobre a fotografia do casamento de Isolda Schwee e Edemar Heine, em 1969(?), em Linha Silva Jardim, município de Cândido Godói. Nessa foto também estão seus avós, tios, tias e parentes:
YouTube, "Uma Fotografia de Casamento" - https://youtu.be/gvpDIKW21R0
Obrigado, Anibal!
ExcluirJá incorporei o vídeo ao final do texto.
Abraço!
Texto muito gostoso de ler. Eu, que amo história (do mundo ou de família),comovi-me com ele. O vídeo do Anibal também deu um toque especial.
ResponderExcluirVera, separe fotografias e "causos" de Caçapava, pois em breve passarei aí para conversar. Abraço!
ExcluirCaro Jean: Parabéns e obrigado pelo texto "A "fotogeist" de um tempo", pois aviva nossa memória dos tempos de Linha Silva Jardim. Há poucos dias vi um caminhão igual a esse da foto rodando perfeitamente em Santa Maria-RS, igual ao que era usado pela família à época, e se não estiver enganado, era acionado à manivela.
ResponderExcluirAbraços a todos de Paulínia e São Paulo
Milton Luís Mantey
Santiago-RS
Caro Milton, estou devendo uma visita em Silva Jardim e região. Há quase vinte anos não vou para o Rio Grande do Sul. Uma hora devo zerar esta dívida para abraçar aqueles que ainda cultivam nobres terras. Grato!
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