Jean Tosetto (quem?) aos 22 anos de idade. |
Nesta vida a gente ganha alguns presentes magníficos, os quais sequer pedimos ou mesmo imaginamos que receberemos um dia. Por outro lado, existem coisas com as quais sonhamos e algo em nosso âmago nos diz que nunca iremos ter ou realizar.
Minha relação com o Carnaval é um exemplo disso. Hoje não dou muita importância para esta festa – confesso que nunca fui muito empolgado com ela. O que não quer dizer que não tenho boas histórias de Carnaval para lembrar.
Ainda no tempo da faculdade de Arquitetura e Urbanismo, tive a oportunidade ímpar de fazer parte de uma pequena comitiva que viajou para a Itália, para estudar obras do período renascentista. Passamos a terça-feira gorda em Veneza, onde o Carnaval é muito charmoso e romântico – ingênuo perto do brasileiro, mas muito autêntico. Por coincidência, era meu aniversário de 22 anos.
Afirmar que Veneza é uma cidade única é tão redundante quanto um samba-enredo que retrate a alegria de ser brasileiro. Mas só quem visita a cidade percebe em cada minúcia o que isto significa: um lugar sem carros, sem fiação elétrica exposta, sem poluição visual oriunda de placas de publicidade.
Os canais borrifam o ar com um cheiro de maresia que logo é interrompido pelo aroma de flores nas jardineiras que demarcam as áreas abertas de restaurantes, cuja culinária se encarrega de fidelizar o turista. Isso sem mencionar os edifícios com suas ordens clássicas cujas pilastras são encerradas por entablamentos que transportam o transeunte para uma outra era.
No meio da praça de São Marcos, caminhávamos entre princesas mascaradas que nos encantavam apenas com o olhar. Acreditem: além de sedutor, isso é muito prazeroso, bem melhor do que uma balada regada com bebidas energéticas. Qual é a graça de ficar com alguém que você sequer teve o trabalho de galantear?
Em Veneza é diferente: você tenta completar em sua mente a face da garota que te vislumbrou de canto. Fica melhor quando você também usa uma máscara.
Se no Carnaval o que vale é a fantasia, tive meu momento de Gregory Peck – naquele filme em que ele é um jornalista em Roma, que leva Audrey Hepburn para passear – ao conhecer uma italianinha que pediu para pintar meu rosto.
Escolhi um bigode de Salvador Dali. O toque da mão dela em meu rosto, seus olhos azuis me “tomografando”, e sua voz suave me perguntando coisas sobre o Carnaval do Brasil foram suficientes para me arrebatar. Criei coragem para dizer:
– Tu sei una bellissima dona.
Recebi de volta um sorriso repleto de serotonina. O feitiço era recíproco.
Neste momento, me chamaram para seguir com o roteiro de visitas à igrejas, museus e galerias – em alguns casos só pudemos ver a fachada. Tive tempo apenas para combinar com a moça de nos vermos de noite. Parti feliz quando soube que ela estaria me esperando.
Um detalhe: em 1998 não havia redes sociais na Internet e poucas pessoas tinham e-mail, portanto, eu estaria contando apenas com a boa fortuna para vê-la novamente. A felicidade plena estava logo ali e era tão grande que não iria escapar.
A noite chegou e a praça parecia maior. Estava coalhada de gente fantasiada. Procurei por ela em cada ladrilho daquele logradouro. Minha angústia só aumentava. Quando deu meia-noite os sinos tocaram – e o que era doce tornou-se uma sentença condenatória, a cada badalada. O Carnaval havia acabado. Achei que as pessoas ficariam mais um tempo por ali – no Brasil a folia atravessaria a madrugada – mas elas foram embora, como europeus que respeitam uma tradição secular. Alguns policiais tocavam uns poucos bêbados.
Comecei a andar pelas vielas de Veneza, seguindo os grupos que se dirigiam para os hotéis, já imaginando que não a encontraria. Andava mais rápido e quando ultrapassava uma suspeita me virava, apenas para ter que disfarçar o comportamento estranho, passando a mão no cabelo e olhando para o chão, como se estivesse procurando algo. De repente fiquei sozinho na madrugada – só estes instantes dariam um livro na minha cabeça: eu, vagando como um fantasma pelas sombras de Veneza.
A quarta-feira de cinzas amanheceu mais cinza do que nunca, quando entrei no trem para Mantova. Naquele momento eu sabia que nunca mais veria Elisa…
Um dia espero encontrar o diário da viagem, com anotações de lugares visitados, menu das refeições, desenhos feitos à mão livre – inclusive do rosto da menina. Sob as arcadas de uma obra projetada por Leon Battista Alberti, fiquei me perguntando o motivo de não ter conseguido roubar um mero beijo daquela musa. No Brasil a molecada beija dezenas de garotas numa noite de samba, mas eu só queria um beijinho…
Moral da história? Eu estava guardado para a minha esposa, e não posso encerrar este conto sem mencionar outro aniversário que passei numa terça-feira gorda de Carnaval, que seria o meu último como solteiro – eu, que havia percorrido três continentes e vários países, fui conhecer a Renata, mulher da minha vida, num balcão de farmácia, sem máscaras, perto da minha casa.
Baixei a capota de meu calhambeque e passei na casa da então namorada. Ela não sabia, mas naquele passeio, eu planejava levá-la até Serra Negra, distante pouco mais de 100 quilômetros da nossa cidade, para almoçar na praça central, que é muito simpática e acolhedora. O plano estava dando certo, o que incluía subir de miniférico até o Cristo Redentor da cidade – neste ano eu estava completando a idade de Cristo…
Lá em cima a paisagem era deslumbrante, mas o tempo fechou e uma chuva nos deixou presos sobre um véu de neblina. A lanchonete local só tinha café expresso e pacotes de salgadinhos de bacon para vender: foi justamente o que almoçamos. Que romântico!
O jeito foi se acomodar num alpendre e apreciar a chuva caindo sobre a região e lavando a alma. Nos abraçamos para trocar calor e aquilo, por mais simples que pudesse parecer, foi sublime. Não havia mais o que procurar, não havia mais o que esconder. Me lembrei daquelas arcadas em Mantova, como se fosse outra pessoa a estar ali para consolar aquele jovem estudante, vítima de uma paixão fugaz de Carnaval.
– Hei, Jean, tudo vai ficar bem. The best is yet to come!
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Que delícia de Conto, para um domingo de chuva (sim. Está chovendo aqui, em Balneário Camboriú). Obrigado, Jean.
ResponderExcluirCaro Ênio, resgatei esse conto do extinto blog do Ricardo Setti na Veja. Uma pena que ele se aposentou, pois dava espaço para colaboradores como eu. Abraço!
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