sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Overdose de futebol, comoção & luto

O futebol moderno, que há tempos mata torcedores por causa da violência das arquibancadas e arredores de estádios em dias de jogos, também faz vítimas entre os seus praticantes.

Antigamente os campeonatos estaduais de futebol eram os mais importantes e ocupavam a maior parte do calendário. Os times percorriam, no máximo, poucas centenas de quilômetros de ônibus para jogar entre si, pois os clubes da primeira divisão quase sempre eram das capitais ou arredores. Com raras exceções, os incidentes em percursos relacionados às partidas ficavam restritos aos registros da mídia impressa de alcance regional.

Então decidiram criar um torneio nacional entre os grandes times dos principais campeonatos locais, que precisavam necessariamente viajar de avião para os duelos, disputados em poucas rodadas que apontavam o campeão e o vice, que disputariam o certame continental.

Ainda há jornalistas e historiadores que não reconhecem as primeiras edições do campeonato brasileiro, que ganhou tal definição por influência da ditadura militar, que desejava expandir a competição para todos os estados, agradando deste modo os caciques políticos de cada sertão.

Quando reformaram o campeonato nacional usando o critério técnico sobre o geográfico, logo um canal de TV, sob orientação de um famoso narrador de futebol, propôs a criação de uma copa que fosse disputada novamente por times de todos os estados, inclusive daqueles onde o futebol é semi-profissional.

Depois, o campeonato da América do Sul, que classificava o campeão para a disputa do título mundial contra o vencedor europeu, passou a dar mais vagas para os times nacionais. Como se não bastasse, criaram uma espécie de segunda divisão do continente, de modo que uma dúzia de times brasileiros se envolveriam em competições internacionais a cada ano.

Desmontaram os campeonatos estaduais, pouco atrativos para os canais de TV, e criaram várias divisões nacionais e dois torneios continentais inchados e, desta maneira, a cada dia da semana seria possível assistir jogos de futebol ao vivo por canais pagos ou abertos.

Nessas décadas, o futebol ultrapassou as fronteiras do esporte e virou produto de consumo - um dos entretenimentos mais rentáveis da indústria que fabrica ídolos. O que mostram na TV são os estádios multicoloridos, mas poucos se dão conta de que os jogadores passam mais tempo dentro de aviões do que em gramados de modernas arenas. Vale o mesmo para alguns cronistas esportivos e dirigentes.

O futebol moderno, que há tempos mata torcedores por causa da violência nas arquibancadas e arredores de estádios em dias de jogos, também faz vítimas entre os seus praticantes. Multiplicaram-se as viagens e a Internet potencializou o alcance global e instantâneo dos acontecimentos.

Um time pequeno se classifica para a final de um campeonato internacional classificatório para outro, e contrata uma empresa de aviação pequena - especializada, vejam só, em transportar times de futebol. Embarcam num avião de passageiros considerado como de pequena capacidade e autonomia de voo, incapaz de realizar uma viagem, dentro do continente, sem uma escala para reabastecimento de combustível.

Aquele narrador de futebol, ao comandar o encerramento do principal telejornal do país numa tocante homenagem às vítimas, apenas cataliza a série de manifestações ao redor do mundo, em diversos estádios e incontáveis monumentos, de modo que somos incapazes de questionar a razão de ser do esporte bretão, apesar da demonstração de humanidade resultante desse fenômeno. Este espetáculo de comoção mundial alimenta a força do futebol, que tomou proporções numa escala que suplanta o poder ideológico que apenas as grandes religiões detinham.

Quando, antes mesmo do sepultamento das vítimas, alguns clubes já declaram que vão emprestar jogadores para sustentar o time que encontrou a morte num acidente de avião, estão reafirmando a continuidade do futebol acima de tudo - pois as pessoas que se vão não voltam, mas são substituíveis. Se isso não te assusta, então só resta aguardar a retomada das partidas de futebol canceladas por motivo de luto.

Veja também:

A vida é uma cachoeira

A explanação de Pedro Calabrez, do canal NeuroVox, merece a sua audiência:

2 comentários:

  1. Após a tragédia somos tomados pelo nosso lado emocional. A Emoção é do Homem, é dos seres vivos. Assim somos, com mídia ou sem mídia nos influenciando. Somos humanos.

    Tentando compreender o que aconteceu, vamos assimilando aos poucos a tragédia recém ocorrida. Refletimos.

    E refletindo - dando uma atenção ao nosso lado racional - pensamos e expressamos o que racionalmente sentimos e chegamos à conclusão:

    “Pelos mais diversos interesses, sejam ideológicos e – principalmente, pelo Lucro e Rentabilidade de grandes e médios grupos - somos incessantemente influenciados pela mídia desde os nossos primeiros anos de idade. No entanto, por mais que reflitamos e façamos críticas, não se apercebermos e também acabamos colocando em prática o que já assimilamos de tanto ouvir e ler, tais como, ‘a propaganda é a alma do negócio’, ‘quem não se comunica, se estrumbica’, e até fazemos uma associação com Fernando Pessoa e entendemos o que move a mídia: ‘Se morrer é preciso, manter a atenção da audiência também é preciso’. Até no vídeo, acima, o profissional também aproveita o ambiente pós tragédia e faz um chamativo título "espetacularização da tragédia", e aproveita para divulgar o próximo vídeo, além dos vídeos que ele já publicou - pois, ele também tem os seus interesses profissionais, não apenas movido por princípios pessoais. E nada a recriminarmos quanto a isso. Mas, convenhamos, é sempre bom refletir e, degrau a degrau, buscando filtrar as influências e aprendendo a se blindar contra a manipulação diuturnamente tentada pela mídia.”

    Somos humanos e diante da tragédia e comoção causada, vem o luto e as reflexões, que nos ajudam na cicatrização das feridas, a tocar a vida por nós e por muitos outros. Assim, não entramos em parafuso graças ao nosso lado emocional e não unicamente ao racional, com ou sem a interferência da mídia. Somos humanos, não unicamente seres manipuláveis.

    A solidariedade, o amor e o carinho do povo colombiano e outros povos, além do lado cerimonioso e as homenagens constituem forte demonstração de Humanidade. Pelos povos, pelas instituições de Estado e mundo esportivo envolvidos, a mídia fez o que lhe compete: comprovar e reportar as emoções humanas, e de certa forma, reforçar a todos: “A vida e os sonhos continuam. Os mais novos têm o Direito, o Dever e a Missão de buscar um mundo melhor, de mútuo respeito e solidariedade”.

    Força Chape! Força Chapecó! Força Santa Catarina! Força Brasil! Força Colômbia!

    Anibal Hercules Tosetto

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  2. O mundo seria mais simples, menos problemático e os pensadores seriam dispensáveis, se não tivessem inventado o futebol, o avião e a televisão. Se o Papa não fosse torcedor e nem rezasse pelo San Lorenzo de Almagro, a Chapecoense não teria vencido a semi-final e o time do San Lorenzo teria viajado no mesmo avião do piloto boliviano, que até a seleção argentina viajou recentemente para enfrentar o Brasil em Belo Horizonte.

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